Carlos Alberto Lopes

domingo, junho 24

JOÃO DE DEUS E O COBERTOR SALTANTE

A casa se localizava à beira da estrada. Fôra construída em barro, jogado aos montes, sobre a armação de bambu, tanto por fora quanto por dentro...
Era uma casa de três cômodos, sendo sala, cozinha e quarto, com um banheiro no fundo do quintal.
Nas paredes, já se via o surgir do musgo, que ali se formava por excesso de umidade e escassez de cuidados com o imóvel, que a Unidade Municipal de Saúde, já constatara por duas vezes, estar com foco do "Barbeiro", o inseto transmissor da "doença de Chagas"!
Mas os proprietários continuavam ali, sem arredar o pé, tomando água de uma fonte natural não potável, que corria a céu aberto, descendo do barranco de barro vermelho, que se podia ver aos fundo do quintal.
O casal de idosos, que nos fins de tardes sentava-se à porta da frente, a menos de dez passos da movimentada rodovia, trazia no rosto as marcas do tempo, e no andar, o peso da idade...
Eram os avós do pequeno garoto, que corria sobre a luz do infinito, tentando capturar um pequeno coelho do mato, que teimava em deixá-lo chegar perto, mas corria-lhe das mãos, em saltos, que faziam o menino se divertir.
A esperteza do animal, o estimulava, ao ponto de não o deixar desistir de colocar-lhe as mãos.
Não o iria transformar em sopa, ou na refeição do dia...
O queria como mascote, como companheiro de aventuras, como aquelas que o avô contava-lhe, quando estava de "boa maré", sobre o homem "caolho", de óculos e chapéu de couro cru, que havia existido no antigamente, e que havia perdido a cabeça junto com uma bela mulher, só porque queria justiça, nada mais do que justiça!
Por certo, para conseguí-la, foi vez por outra injusto, mas o erro é dos mortais, e como dizia seu avô:
_".... O homem foi macho!"
Pois é. Queria ser macho também, e não seria aquele "Cobertor Saltante", que o faria desistir de ter o seu mascote, não senhor!
Queria, porque queria, e pronto...
E era "aquele mascote"... Outro não o contentava!
Já se acostumara com ele, ora bolas!
O tio, que morava na cidade, já havia lhe trazido um "vira-latas", mas o pestinha foi atravessar a pista, não se sabe para que, e... virou adubo do roseiral do avô, que lá o enterrou, com direito a uma cruz de galho seco, e lá ainda estava ela, já com uma roseira lhe aproveitando como apoio.
Pelo menos, depois de morto, o "pestinha" do vira-lata servia para alguma coisa, pois a roseira da cruz, era a que melhor estava aguentando o calor que estava fazendo...
O asfalto da estrada, ficava marcado com os pneus das "jamantas" pesadas, que passavam numa velocidade tamanha, que se podia escutar até o vento, assobiando...
Mas o danado do "Cobertor Saltante", não se assustava com o barulho da estrada. A única coisa que o assustava um pouco, mas também não era muito, era a vassoura da vovó, quando ela resolvia, vez por outra, varrer o chão batido e levantar poeira...
Mas não era só o "Cobertor Saltante" que reclamava...
A mãe do menino, uma moça que a uns tempos atrás resolveu ir de carona até a cidade, e ao voltar, trazia já no ventre seu rebento, sem saber direito explicar quem havia sido o caminhoneiro com quem passara a noite, também reclamava com a anciã, este seu costume, principalmente se o praticasse, quando a roupa estava no varal. A moça tinha que lavar tudo de novo, pois os lençóis que já não eram tão brancos como deveriam ser, ficavam amarelos, "que nem se tivessem com ecterícia", como dizia ela, reclamando com sua mãe...
Quem também não era muito chegado no varre-varre, era o velho, que na noite em que a velha tinha esses "ataques de limpeza", não pregava o olho, numa tosse danada, e um pigarro que ardia-lhe a garganta.
O "Cobertor Saltante", quando a idosa senhora começava o varre-varre, se escondia em sua toca, e lá ficava, até que ela desistisse da tarefa de limpeza.
O menino era outro que não gostava, mas não era por nada não. Ele não gostava, é porque com a poeira que se levantava com o uso da vassoura, ele não conseguia ver onde seu companheiro se escondia, pois, se soubesse, já estaria com ele ao seu lado há muito tempo, desde o dia , em que a mãe não o viu sair do cercado, e o pegou ainda engatinhando ( pois não tinha mais do que uns seis meses), quase já no meio da pista, indo atrás daquele a quem hoje já chama de "Cobertor Saltante", mas que naquele tempo chamava apenas de... - "dá...dá...dá..."
Mas o tempo do dá...dá...dá... , já era passado...
Daqueles tempos, ao hoje, já se podiam contar seis longos anos de correria cansativa pelo chão batido, com o menino, sempre a três ou quatro passos atrás do "Cobertor Saltante"...
Às vezes, quando o tempo mudava e a chuva caía, transformando o barro batido em lama vermelha, a jovem mãe não deixava o valente corredor sair de casa, e ele ficava pelos cantos, brincando com meia dúzia de gravetos, vez por outra procurando pela janela, com aqueles seus olhinhos vivos, o companheiro de aventuras, e sempre o via a saltar na chuva, refrescando-se...
Naqueles dias de chuva, além dos bolinhos de farinha de trigo, água e açúcar, queimados na gordura quente, eram os dias das perguntas:
_"Mãe, por que o vô é vô?"
_"Porque ele é meu pai, filho.."
_"E por que eu sou filho?"
_"Porque você nasceu de mim..."
_"E cadê o meu pai?"
_"Não sei... Deve de tá por aí..."
_"E como é meu nome?"
_"João de Deus!"
_"Por que... de Deus?"
_"Porque foi Deus que te deu prá mim!"
_"E não me deu prá um pai também?"
_"Não sei..." - Uma lágrima rola dos olhos da jovem mãe...
_"Mãe!!! Porque que ocê tá chorando?"
_"Não é choro não, filho... É cisco!
_"Há! Bão! Deixa eu assopra, que passa..."
Certo dia, um carro bonito, com quatro grandes portas e um cavalinho de aço no capô, parou frente à casa...
Dele, saiu um senhor, que a mãe apresentou ao menino como sendo o seu Tio Antônio, que viera da cidade grande, em visita aos velhos.
Após beijar o menino, levou o estranho mais de duas horas, em conversa com a jovem senhora.
Quando terminou a conversa, a mãe chamou João de Deus, e lhe disse:
_"João, você já está ficando um rapazinho. É hora de você estudar, ir para a Escola, ficar inteligente... O Tio Antônio veio da cidade, para buscar você. Você vai morar com ele, e a Tia Gertrudes, mais a Magda e a Hortência, suas primas..."
_"E ocê, mãe?"
_"Eu vou ficar aqui, para cuidar da vovó e do vovô..."
_"E eu num posso ficar não?"
_"Tá na hora de você ir pro Colégio, e aqui não tem Colégio... Só lá na cidade, onde mora o Tio Antônio mais a Tia Gertrudes..."
_"E eu não vou voltar mais?"
_"Vai... Quando puder... Nas férias..."
_"E o "Cobertor Saltante"?"
_"Quem?"
_"Meu amigo... o "Cobertor Saltante"!"
_"Há... Teu Coelho... Eu cuido dele prá você!"
"Ocê num esquece de dá comida e água?"
_"Não esqueço não, filho..."
_"Promete, mãe?"
_"Prometo, filho!"
_"E ocê vai ver eu?"
_"Vou... Assim que puder..."
_"Óia, mãe, se o pai aparecê, dizendo que Deus deu eu prá ele também, dá o endereço do Tio, e manda ele levá o "Saltante", prá passá um tempo comigo... Talvez, com a aula lá no Colégio, eu aprenda a correr mais que o "Cobertor", né mãe?"
_"Talvez, filho... Talvez..."
_"Intão eu vou!"
A jovem mãe, com lágrimas nos olhos, arrumou as roupas do menino na única mala da casa, uma antiga maleta de papelão... Deu banho no garoto numa antiga bacia de alumínio, que o avô usava para lavar os pés, trocou-o com a roupinha nova, que o Tio lhe trouxera, e lá foi João de Deus, para a cidade grande, tentar ser que nem seu Tio Antônio: estudar, ser gente, ter carro grande... e esquecer pai e mãe...
Dois dias se passaram...
O pequeno coelhinho vinha até a porta da casa, corria de um lado para outro, fazia festa, e como João de Deus não aparecia, sumia pela vegetação rala e as moitas de capim...
Na manhã do terceiro dia, não houve festa na porta da casa...
Nem correria, de um lado para outro...
Bem em frente à casa, na estrada, jazia "Cobertor Saltante", que um caminhão havia atropelado...
Virou adubo de roseira, o amigo de João de Deus.

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