Carlos Alberto Lopes

quarta-feira, junho 27

A FÉ

No alto da escadaria do morro da boa viagem, apareceu certa manhã uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, faltando a cabeça.
A imagem estava bem no meio de uma mesa farta, daquelas preparadas no capricho, pelos adeptos do candomblé.
Do lado direito, estava uma vela azul acessa e, no esquerdo, dentro de um copo de vidro, cheio até a boca de azeite de dendê, se via a cabeça da santa.
Amontoou-se o povo, ao redor do achado, sem saber como colocar fim aquele afronto religioso.
Maurício da Joana, mestre em solucionar problemas, arrumando outros, sentenciou:
_Isso é uma falta de respeito!
Jerônimo da Conceição, com a autoridade de filho de santo, com cabeça raspada na Bahia, e montureira de guias multicoloridas ao pescoço, bateu o pé no chão três vezes, e disse:
_Ninguém toca em nada, pois é despacho pro bem!
A confusão se formou, pois uns apoiavam Maurício, que queria retirar tudo aquilo da escadaria do morro, e outros apoiavam Jeronimo, que dizia que o trabalho merecia respeito.
Conceição, mãe de santo das melhores, já passando de seus setenta e tantos anos, foi chamada e, ao chegar não falou com ninguém, apenas colocou a mão no copo de azeite, retirou dele a cabeça da santa, e a colocou-a ao seu lugar.
Quando Conceição virou-se ,a cabeça caiu do pescoço da santa e mergulhou novamente no copo de azeite.
Conceição , ao ver aquilo, ajoelhou-se frente à imagem, e prestou seus respeitos, acompanhada por Jeronimo e alguns moradores.
A escadaria do morro, a esta altura, já estava repleta, querendo ver a santa.
Meia hora depois um cego, que ao pé do morro vendia velas, começou a dizer aos gritos que estava vendo a santa, e a noticia se espalhou.
O “Zé da Venda”, dono de uma xiboca no meio do alameda, colocou refrigerante e cervejas em lata em algumas caixas de isopor, e espalhou os filhos em meio a multidão, tentando faturar um extra.
Marcolina, doceira de mão cheia, fez um tabuleiro de quindins e entrou na multidão.
Em minutos, tinha vendido todos!
Três dias se passaram, e lá estava a multidão e, no alto da escadaria, o tal despacho, com a santa ao meio, sem cabeça.
Horácio, carpinteiro de mão cheia, devoto “ate debaixo
d’água” de Nossa Senhora Aparecida, quando viu que o tempo começava a fechar, com ameaça de chuva, fez uma espécie de cobertura, com madeira, e colocou em cima da santa.
No alto da escadaria, ficou parecendo que havia uma pequena capela, de tão caprichado que ficou o trabalho do Horácio!
Marcolino, que ganhava a vida como fotógrafo, fez bela foto do alto da escadaria, tendo o despacho e a santa, como modelo. Vendeu mais de duas mil copias a três reais cada.
Faturou “uma baba”, com a idéia!
Joana, que tinha uma vendinha de imagens de santo, em meia hora ficou sem seu estoque de Nossas Senhoras Aparecida, e mandou buscar mais em Jacarepaguá, onde era fabrica.
A movimentação no morro, chamou a atenção da igreja católica, que tinha pequena capela ao pé do morro.
Padre Justino esteve ao pé do despacho e, pra susto de muitos, abençoou a multidão e, ali mesmo, acabou rezando missa e distribuindo hóstias sagradas.
O morro nunca mais foi o mesmo, depois que apareceu aquele despacho no alto da escadaria.
Ate o índice de crimes comuns e roubos, caiu cinqüenta por cento, depois que a santa sem cabeça apareceu.
Descobriu-se certo tempo depois, que o cego que viu a santa nem cego era, mas quem ia contar ao povo?
Logo, um grupo de “notáveis” do morro, formaram uma espécie de confraria, que tinha como objetivo o preservar do local onde apareceu o despacho e coordenar o uso comercial da imagem e suas conseqüências para a comunidade.
Em pouco tempo, graças a coordenação da tal confraria, o morro ganhou calçamento, rede elétrica extensiva aos barracos, uma creche, posto de saúde e outros benefícios sociais que, ate então, eram sonhos de idealistas.
No local do despacho, a confraria mandou levantar uma capela de alvenaria no alto da escadaria.
Um ano depois, como a capelinha começou a ficar pequena para os romeiros, que diariamente movimentavam o morro, a confraria pediu desapropriação de alguns barracos e foi feita a reforma da capelinha, nascendo no local uma media igrejinha.
No ato de transferir a imagem para a nova capela, já aumentada, descobriu-se que a imagem da santa possuía uma espécie de mola no pescoço. Era por isso que a cabeça da santa não parava no local.
Embora descobrindo-se que tudo não passava de uma bem montada fraude, ninguém espalhou a noticia pois, fraude ou não, o despacho no final da contas acabou beneficiando o morro e o que interessa é o resultado, como em tudo na vida.
Afinal, o que vale é a fé!

Nenhum comentário: